sábado, 12 de março de 2011

Coisa de Barbearia


Minha quinzenal visita à barbearia é o único momento em que leio o jornal. O de papel. É lá onde eu me dou conta mais intensamente de que estou envelhecendo, e não é somente porque sem as lentes eu não conseguiria ler o jornal. De papel. Corto o cabelo no mesmo local há 12 anos e, com os anos, percebo a reduzida quantia de cabelos que caem na capa vermelha emborrachada em volta de meu pescoço. Não leio o jornal durante, mas antes do processo, enquanto aguardo minha vez. Durante o processo estudo a queda. Do cabelo. Cada vez mais grisalho. E da pele facial. Cada vez menos rija. Leio então suas linhas.
Que leitura formidável, então! Leio algumas passagens do primeiro capítulo e a descrição do garoto com menos de um metro totalmente ereto na palma da mão de um cara sorridente que o chama de amigo. Amigos que não se conheceram o bastante. Um amigo desperta ao som do derradeiro pa-pa-pa-pa do Esporte Espetacular e dá falta do tapete de pelos do peito do outro amigo onde repousava a cabeça. Foi-se. E foi-se sem que se conhecessem melhor.
Pulo então para capítulos repletos de pontos: no queixo, que se encontrou com o para-peito da janela. Na extremidade superior esquerda da face, próximo ao olho que não viu o obstáculo e encontrou-se com o mármore branco das escadas daquela varanda. Não faltam pontos sequer na cabeça, que chocou-se contra a quina de jacarandá, capa em volta do pescoço, faz-de-conta que é formiga atômica.
No título do capítulo quatro, há uma ilustração. Um trem de chocolate. Do tamanho da mesa. Velinha e presentes. O polegar da mão direita encolhido na palma para que todos vejam o que é celebrado hoje. Palmas para ele.
Lá pelo capítulo oito, as linhas descrevem outra casa, outra varanda, novos pontos. Pontos parágrafos. E de seguimento. Na mesma linha, travessão. E mulheres generosas. Umas na cozinha, outras frente à lousa. Algumas grávidas. Prenhas de sonhos e ignorantes quanto ao que o tempo já concebeu para seu futuro. Era uma vez histórias de terror. Era uma vez sustos noturnos causados por portas abrindo-se sozinhas. Era uma vez infância. Era só uma. Uma dessas, apenas uma vez.
São capítulos com discos vermelhos de vinil, rainhas do milho, rainhas do mar, iaras, marias e monicas. E aparece também um careca quase irreconhecível, com a cabeça inchada de tanto trabalhar ao sol com a enxada, feliz por entrar no quartel. Este se foi sem nunca ter ido. Não se tem notícias. Largou a enxada e ergueu um muro. De concreto. Por lá perdeu-se.
Um capítulo traz um serzinho lindo, com os olhinhos azuis que sorri apenas quando vê o tio. O tio que agora vai ter um sobrinho-neto de cuja gestação aquele serzinho lindo hoje se ocupa. É mais um capítulo, certamente ainda muito distante do epílogo.
Entre as muitas ilustrações, há um esboço daquela que recebeu nome de cesta de flechas escondendo-se no breu do quarto onde deu início ao tórrido caso de amor que perduraria a vida inteira, com aquele ruivo delgado e que provavelmente a deixará sem ar nos capítulos futuros.
Capítulo 27: a paixão e o completo investimento de tempo por quem não merecia sequer um segundo de atenção. Grandes lições, marcas implacáveis.
Capítulo 33: o amor pelo amor. Amor de ser humano. A mais doce, generosa, cheirosa e charmosa das criaturas. Trouxe Pinóquio, violão, Billy, goiabeira e alegria. Lindas marcas em capítulos com páginas de cores distintas. Destaque especial.
Fico na metade do capítulo 39. O barbeiro já espana, retoca e estica o braço para pegar o espelho. O outro. Quer mostrar a parte de trás. Um ano atrás eu ainda conseguia ver nitidamente a cicatriz. Talvez esteja na hora de trocar as lentes. Certamente é hora de ir.
Mais uma olhada no espelho à frente. Chega de reflexão. Em duas semanas tem mais. Duas semanas a menos. Ponto parágrafo.

Um comentário:

Mendigo Intelectual disse...

rs É verdade. Nesse país falta o que sobra no Japão e França por exemplo, a saber, respeito pela coletividade e consciência política. É um país maravilhoso por natureza, porém cheio de péssimos costumes e hábitos sociais oriundos da colonização...Agora que o país passa por um bom momento temos que disseminar certos hábitos saudáveis para que as próximas gerações herdem um país melhor, vejo que mudanças a nível social só acontecem ao longo de gerações, assim como certos avanços científicos.Por isso é preciso investir a longo prazo, não ser imediatista nestas questões, pois um dos motivos de estarmos assim é essa cultura do imediatismo e de soluções mágicas...

Um abraço.
Valeu.