A hora já avançara muito mais do que sinalizavam meus sentidos. Na verdade, eu estava confuso, embriagado pelo momento, aquele recorte ímpar de uma realidade turva. Sentia um cheiro de seis horas da manhã - quando o ar ainda se encontra denso de orvalho e livre do magnetismo das preocupações do mundo; aquele ruído insistente, entretanto, lembrava-me a hora do rush. A leveza n’alma, não obstante, pouco combinava com a sofreguidão de qualquer alma desgraçada tentando voltar para casa. Sentia-me em casa, apesar do caráter tão estranho imposto pelo cenário.
Aproximei-me da janela e abri as cortinas. Foi quando eu me dei conta de que já passavam das seis. Da tarde. Era quase noite. A linha ao fundo, em sua ida e vinda, seu subir e descer, trouxe-me de volta à luz de que encontrava-me a navegar. A luz da cidade ao fundo refletia-se nas águas quase planas, não fosse pela pequena turbulência que se originava no canto superior direito daquela moldura viva. Era seu barco. Partia para algum canto neste mundo, escondido pelo canto superior direito de minha moldura.
Não me senti triste. Ao contrário, senti-me aliviado. Fui tomado pela profunda consciência de que chegara sua hora de ir. Este barco já não mais comportava suas marcas negativas, seus arroubos de ódio, sua fome de matar, vingando-se de todo o mundo por ter sido morto por um só. Pela primeira vez senti que caso seu barco despontasse de volta daquele canto superior direito de minha moldura, eu não pensaria duas vezes antes de carregar o canhão.
Vi desaparecer naquele canto um barco deveras pequeno transportando um ego gigante, pronto para digladiar com outros, pois aqui neste barco ninguém mais o temia. Cerrei os olhos e torci para que nenhum pirata neste mundo vivesse impune. Senti uma forte convicção de que pouparia minha bala e meu canhão, uma vez que outros barcos já apontavam contra o seu.
Cerrei as cortinas e me virei. Era tudo o que os cinco centavos me ofereciam de show naquele pequeno odeon de vida privada. Rumei para a cozinha e fui tomar um café.